Saúde e Bem Estar


Nas UTIs Covid, dentistas salvam vidas

Presença desses profissionais na linha de frente do combate ao coronavírus é capaz de evitar doenças como a pneumonia associada à ventilação
12/04/2021 O Globo / Imagem ilustrativa

Com informações de "O Globo"

Há mais de um ano, Denise Abranches chega ao Hospital São Paulo por volta de 7h. Vai direto para a paramentação e entra na primeira UTI de Covid ainda pela manhã. Costuma se apresentar ao paciente intubado, mesmo sabendo que ele está inconsciente, e assim explica seu trabalho:

— Olá, eu sou a doutora Denise. Sou chefe da Odontologia do hospital e estou aqui para cuidar da sua boca. Sei que você está lutando, e nós estamos trabalhando para te ajudar nessa luta. Primeiro, vou fazer uma limpeza na sua boca e olhar se está tudo bem. Pode confiar em mim.

A cena se repete ao longo de todo o dia, enquanto a cirurgiã dentista percorre os 73 leitos de UTI ocupados por pacientes com Covid-19 no Hospital São Paulo. Há 23 anos na instituição, Denise Abranches viu seu trabalho ser transformado pela pandemia. Ela agora passa ao menos 10 horas por dia no trabalho, almoça dentro do carro, no estacionamento (“para não tirar a máscara perto de ninguém”, explica), passou aniversário, Natal e Ano Novo no hospital e, quando retorna à casa, exausta, precisa tomar remédio para, como diz, “apagar da memória as cenas do dia”. Quando finalmente pega no sono, não raro sonha que é intubada. No dia seguinte, às 7h, está de volta ao hospital.

— Eu ponho a mão na boca do paciente contaminado, ponho a mão no vírus. A carga viral na saliva é alta. Para os médicos e técnicos de enfermagem, é um imenso risco colocar a mão na boca. Esse é o meu trabalho, não deles. E enquanto eu estiver de pé, estarei aqui cuidando do paciente que houver — diz a dentista, sem esconder as lágrimas de cansaço e tristeza.

‘Perdemos colegas’

Em março passado, além de ver o número de leitos do hospital dobrar com relação a 2020, Abranches perdeu a assistente, com quem trabalhava havia seis anos, vítima da Covid-19. No Hospital São Paulo, ela atende com outros 11 dentistas, além de oito residentes.

— Perdemos pacientes e colegas todos os dias. Sou dentista, não sou intensivista. Não estava preparada para lidar com a morte assim. Na faculdade, a gente pensa que vai trabalhar para deixar o sorriso das pessoas mais bonito. Agora, nossa luta é para que as pessoas sobrevivam.

O trabalho dos dentistas nas UTIs Covid, ela lembra, é fundamental para conter ou impedir eventuais infecções que poderiam agravar o quadro da doença — principalmente a pneumonia associada à ventilação (PAV), uma infecção pulmonar comum entre os que estão sob uso de ventilador.

Odontologia hospitalar

Um estudo publicado no International Dental Journal, em 2018, mostrou que o cuidado odontológico, desde a simples escovação até restaurações, preveniu 56% das infecções respiratórias, como a pneumonia, em pacientes em ventilação mecânica. Ainda assim, são poucos os profissionais atuando na chamada Odontologia Hospitalar. Segundo o Conselho Federal de Odontologia, há 2.120 dentistas hospitalares no país. Não existe uma lei federal que obrigue hospitais públicos a contratar dentistas, embora muitos tenham a figura do cirurgião buco maxilo, que, fora do contexto de pandemia, costuma ser acionado em casos de traumas. O trabalho de higiene bucal nas UTIs em geral é realizado por enfermeiros e técnicos de enfermagem.

No Rio, desde o ano passado, os coordenadores da Odontologia Hospitalar na RioSaúde decidiram dar cursos para enfermeiros e técnicos a fim de replicar procedimentos básicos de higiene oral durante a pandemia, o que já contribui para reduzir problemas causados pela intubação prolongada, como a candidíase oral. O contato do tubo com lábios ressecados pode abrir fissuras, e até mesmo a hidratação labial pode prevenir a herpes ou infecções que chegariam até a corrente sanguínea.

— Mas o que os técnicos não conseguem fazer é a remoção de um foco infeccioso, que é trabalho para um dentista hospitalar — explica Ricardo Pimentel, coordenador da Odontologia Hospitalar a RioSaúde, ao lado de Daniela Fagundes.

Os dois têm percorrido hospitais públicos da cidade para ensinar equipes de enfermagem na linha de frente da pandemia e, também, para ajudar no atendimento de pacientes intubados, enquanto ainda não está implementada no município do Rio uma rede de dentistas hospitalares. Fagundes estima que, na pandemia, o índice de prevenção de infecções respiratórias por meio do trabalho dos dentistas nas UTIs pode chegar a 80%.

— A pneumonia associada à ventilação já é um grande foco da odontologia hospitalar, mas, nos casos de Covid, a replicação viral é muito maior. As pessoas ficam muito mais tempo na UTI, às vezes 30, 40 dias. As bactérias se acumulam e, sem a higiene da boca, a chance de uma pneumonia bacteriana cresce exponencialmente. Com cuidados, essa chance cai muito — afirma Fagundes.

Contato direto com vírus

Na semana passada, acompanhada dos colegas Ricardo Pimentel e Altamiro da Silva Lima Filho, ela entrou no na UTI Covid do Hospital Miguel Couto, onde havia 35 pessoas intubadas. Fizeram a higiene oral de um paciente, os três debruçados sobre sua boca.

— Estamos em contato direto com o vírus. As gotículas de saliva, o aerossol de que tanto se fala, tudo isso está nos nossos rostos, seja num leito de UTI, seja nos consultórios — diz Lima Filho, que foi infectado duas vezes no ano passado e, no início deste ano, foi vacinado, bem como seus colegas. — Já existe uma parte do meio de saúde conscientizada da necessidade dos dentistas nos hospitais, mas é uma profissão que deveria ser mais valorizada.

Criadora de um dos primeiros cursos de odontologia hospitalar no país, a dentista Claudia Baiseredo trabalha na Casa de Saúde São José, no Rio, e em três hospitais de Brasília. Ela conta que, em 2008, quando começou a atuar em UTIs, ouvia piadas:

— Era comum chegar à porta da UTI e ouvir gracinhas do tipo: “Veio fazer clareamento dental no paciente, doutora?”. As pessoas não entendiam nosso trabalho. Hoje, somos chamados para trabalhar na linha de frente da maior crise sanitária da História.

Julia Lamy, que foi aluna do curso de Baiseredo, trabalha há cinco anos na UTI da Casa de Saúde São José. Lá, há sempre um dentista hospitalar de plantão para atender os pacientes internados na clínica. Todos os que estão em ventilação mecânica passam por consultas para avaliar a saúde bucal.

— A diferença, com a pandemia, é que vemos mais lesões na boca, que antes víamos menos. Isso porque o paciente fica pronado, deitado de barriga para baixo com um tubo na boca. O lábio começa a ficar machucado e usamos laser para fechar e evitar que crie um problema maior. Outra questão frequente entre os pacientes de Covid é a herpes e a candidíase oral. São duas doenças oportunistas e muito comuns em pacientes imunossuprimidos — explica Lamy.

Sua carga de trabalho na pandemia aumentou, e agora passa mais de 10 horas por dia no hospital. Os pacientes de Covid, ela completa, passam mais tempo em ventilação mecânica, e mais problemas bucais surgem. As mortes também se tornaram mais frequentes:

— Ninguém está preparado para a morte e, na odontologia, no máximo a gente perdia um dente. Trabalhando tantos anos em UTI, não é que você cria uma casca, mas você aprende a ver o outro lado. Você não presta tanta atenção no que não evoluiu e comemora mais o que evoluiu. A gente aprende a se agarrar ao que está dando certo.

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